Dysvagando



quinta-feira, março 28, 2002


Salvo por um mata-mosquito.

Trânsitando, cruzando um sinal recém aberto. Uma mata mosquito à direita, não cruza a faixa de pedestres mesmo vendo, o homenzinho verde. O representante da saúde pública serve como alerta à minha visão periférica, assustado, não sei bem como, piso no freio. A proximidade, a velocidade, tudo parecia grande demais, meu corpo pende para frente, a mochila, única passageira, voa cai no chão.

Alguns décimos de segundos e confuso, sigo. Refaço a trajetória do que poderia ter sido trágico, mas incólume sobrevivo, talvez tremam minhas pernas, mas nada tão intenso como teria sido em tendo ocorrido o encontro das chapas de aço, dos para-choques e dos milhares de componentes que vem à frente dos carros, e por todo ele.

Certas pessoas, certos momentos, ainda assustam. Velocidade demais e à luz do dia, deixam-me tonto, por alguns instantes ou nos inconstantes encontros. Mas um solidário aperto me confunde, as mãos que anseio sentir, sinto-as junto as minhas e desarmo-me, feliz.



sexta-feira, março 22, 2002


Talvez até hajam refrões mais bregas, músicas mais óbvias, mas essa tocou duas vezes hoje em horários diversos. Tina Turner - What's Love Got to do With it.

...

I`VE BEEN THINKING OF A NEW DIRECTION
BUT I HAVE TO SAY
I`VE BEEN THINKING ABOUT MY OWN PROTECTION
IT SCARES ME TO FEEL THAT WAY

WHAT`S LOVE GOT TO DO WITH IT
WHAT`S LOVE BUT A SWEET OLD FASHIONED NOTION
WHAT`S LOVE GOT TO DO WITH IT
WHO NEEDS A HEART WHEN A HEART CAN BE BROKEN

...


Pior é REM com "The one I love". Onde não é apenas uma proteção a si mesmo que se busca, mas um simples passatempo.


This one goes out to the one I love
This one goes out to the one I've left behind
A simple prop to occupy my time
This one goes out to the one I love

Fire (she's comin' down on her own, now)


This one goes out to the one I love
This one goes out to the one I've left behind
Another prop has occupied my time
This one goes out to the one I love


R.E.M./Athens Ltd. for all R.E.M. originals




quinta-feira, março 14, 2002


Homem, mulher, essas coisas


Ofeto começa feminino, depois é que são acrescentados os atributos, digamos assim, masculinos. Por isso nós, homens, temos mamilos, e não sabemos o que fazer com eles. Quer dizer: a história biológica do ser humano é exatamente o inverso do seu principal mito de criação, em que a mulher sai de dentro do homem. O mito é não apenas um desmentido do fato, e do feto, como uma apropriação masculina de um feito feminino. Ao pôr o primeiro homem para dormir e retirar sua costela e produzir a primeira mulher, Deus fez uma paródia de parto, reivindicando para os homens, no caso Ele e Adão, a primazia do ato de dar vida. E com anestesia, um detalhe que não deve escapar às mulheres, depois condenadas por Ele a padecer de todas as dores da procriação enquanto o homem, responsável por tudo, só era condenado a folhear ?Caras? antigas na sala de espera. Todos os mitos desde os inaugurais, como toda a cultura humana, têm sido masculinos, num contraponto ressentido com a história biológica, verdadeira, feminina, da espécie. Pura inveja.


Freud, que (sendo homem) era suspeito, inventou que a mulher tem inveja do pênis. O homem é que não agüenta a idéia de não estar aparelhado, como a mulher, para se integrar aos grandes dramas reincidentes da Natureza, ovulando de acordo com as fases lunares, gestando, parindo e amamentando filhos e identificando-se com os ciclos de fertilidade da Terra, sentindo as variações de clima e de idade com mais intensidade, e ainda encontrando tempo para ir ao cabeleireiro e dirigir empresas. Enfim, participando. Enquanto ele fica de lado, como um penetra, esperando em vão que a vida o chame para as suas graves verdades e obrigado a inventar uma história paralela de fantasia. Se você concordar que o pênis é o órgão que rege esta história paralela, e que a civilização se explica como uma angústia de potência, o que Freud quis dizer era que a mulher invejava o poder falocrata, ou justamente o que o homem inventou para compensar o fato de não ser mulher. Outro mito usurpador.

Esta manifestação não é paga, não é encomendada e não, não estou pensando em mudar para o outro sexo. É que sempre fui simpatizante.


Luis Fernando Verissimo



quarta-feira, março 13, 2002


Não direi o nome, pois desconheço. Não são necessárias lágrimas por aquilo que em breve mergulhará no esquecimento. Mas só se esqueçe aquilo que se enterra sem esforço, sem cobrir porcamente com ilusões que tentam driblar a memória.

Pode ser o cheiro que numa brisa retorna, pode ser um olhar, ou os olhos confusos que não distiguem bem umas das outras. Apagam-se os vestígios com o toque de novas dermes, na ponta dos dedos onde parecem sempre surgir lembranças antigas, é lá que com memórias novas, não ilusões do que era o passado, se esquece tudo, aos pés de uma nova amada, nada mais precisa ser lembrado, apenas se tocar aquilo que se confronta com os olhos.


Sofro a influência indireta do ar que respiro, do mundo que gira sem que eu veja do sol que se põe. Desse sinto o real poder, mesmo depois que já se foi. Ainda assim continuo sem saber o porquê de tanto calor, já quase findo o verão.

O suor talvez lave-me a alma, torne a todos iguais na perda da água e no surgimento das bactérias que surgem da pele e se proliferam. Processando o líquido que surge de todas as partes, tornando-os detritos bacteriológicos, nada mais. Antes que tudo isso se acometa comigo, busco o frio artificial e ao fim do dia, um banho. Água que misturada ao sabão, dissolve gorduras encrostadas na pele durante mais um dia quente.

A noite e o barulho constante do condicionador de ar me dizem, que se há calor lá fora, dentro, só um frio cada vez mais seco, inodoro; que congestiona as narinas, fazendo-me espirrar pela manhã.



terça-feira, março 12, 2002


Here I stand head in hand
Turn my face to the wall
If she's gone I can't go on
Feelin' two-foot small

Everywhere people stare
Each and every day
I can see them laugh at me
And I hear them say

Hey you've got to hide your love away

(...)

How could she say to me
Love will find a way
Gather round all you clowns
Let me hear you say

Hey you've got to hide your love away


Assim cantaram os Beatles em "You've got to hide your love away". Talvez os motivos possam ser diferentes, mas resta-nos apenas guardar longe os sentimentos. De que adianta dizer palavras amáveis ao vento se quando é passada a brisa, restam apenas as cinzas da palha queimada. Um calor morno que se espalha e some no ar.


Talvez de nada sirva guardar numa redoma tudo que se possa sentir. Preso em uma redoma que logo se torna uma estufa sufocante, ou solto ao vento que traz um fogo que explode a palha seca traz um calor vazio e some. Tanto faz de qualquer forma acaba se guarando em algum longíquo esconderijo, aquilo que os Beatles chamam de amor.



domingo, março 10, 2002


Andando pelo Rio, cruzo ruas, ultrapasso. Sigo meu rumo sozinho junto ao cavalo explosivo que controlo tudo se move e continuo quase que imprudentemente imóvel, sentindo o frescor condicionado que circula um ar sem comunicação com o exterior, circulando sempre, gelado. Quanto mais rápido e sem pausas sigo, mas o ar que apenas gira ao meu redor, torna-se gélido. As músicas que tocam, são interrompidas por anúncios, ou por silêncios e barulhos de engrenagens que não ouço, um pequeno leitor que se move de faixa, lendo uma nova.

São tantos barulhos, luzes tortas, faróis altos. Só resta aguardar ansiosamente a escuridão dos meus sonhos os quais estarão esquecidos pela manhã, ou quando se abrirem os olhos. Ao invés de sonhos restarão tarefas, múltiplas atividades a serem cumpridas e novos deslocamentos, não tão rápidos quanto os dos fins de semana, não tão claros como os do domingo de sol mas muitos dentro do cavalo explosivo que leva até cinco passageiros, malas e quem sabe esperanças, amizades, lembranças. No entanto, durante a semana, leva apenas mais alguns metros cúbicos de aço que ajudam a tornar ainda mais inviável o fluxo de veículos nas ruas do Rio.

Trânsito que não escoa e corações aflitos, presos em suas redomas de vidro, confinados em companhia de estranhos em um enorme ônibus todos igualmente sentindo fluir a vida, mas estagnados em seus deslocamentos diários.